Como psicanalista, diariamente estou em contato com histórias que na maior parte das vezes são desagradáveis às pessoas que me contam. Me lembro que há alguns anos atendi uma mulher de boa índole, secretária e mãe exemplar. Quando me procurou, estava em um nível de stress alto, a ponto de poucos dias antes ter se desligado do emprego que gostava, por conta de um mal entendido. Óbvio que se culpava muito pelo ocorrido e esse foi outro grande problema que ela precisou enfrentar.
Em uma revista especializada, um artigo falava de uma empresa de telemarketing de outro estado, que montou um programa para auxiliar seus funcionários que estavam consumindo álcool em excesso. Entre esses funcionários, claro, estavam aqueles cuja função era justamente lidar com o público.
Tratava-se de uma tentativa generosa por parte da empresa, que estava se preocupando com o bem-estar pessoal do seu funcionário e com a busca pelo que ele podia oferecer de melhor para ela: o seu rendimento diário. Viam isso como investimento.
Nesse artigo também diziam que cartazes, folders e jornais explicativos foram confeccionados aos montes. Reuniões semanais com grupos de atendentes eram feitas, sempre sob a supervisão de psicólogos. Tudo corria bem. O grande foco do programa era reforçar que o álcool [entre outras drogas], não passava de um grande vilão nessa história.
O álcool, como qualquer droga, traz inúmeros problemas em diferentes níveis e esferas, mas dar crédito a essas substâncias, como se elas fossem a gênese da desgraça de alguém, é incutir no erro. Não é o caso desse programa que mencionei, mas sei que muitos outros existem por aí, cometendo o equívoco de achar que somente a interrupção do uso resolveria algo em definitivo.
Como psicanalista, me preocupa descobrir em qualquer caso que seja, o que leva alguém a buscar na droga uma espécie de resposta. Sem saber isso, não vejo uma solução onde todos possam se beneficiar: o país, os municípios, as empresas, as famílias e a própria pessoa que sofre.
Vale lembrar que a dependência, seja ela qual for, age como sintoma de outros problemas. Por assim dizer, ela está denunciando alguma coisa, e como algo que denuncia, ela conta uma história. Essa história não pode ser outra, senão a da pessoa que busca na droga, legal ou ilegal, uma forma para lidar com a sua realidade.
Programas que visam soluções efetivas para casos assim, precisariam levar em conta a subjetividade de cada participante.
Ciente de que a dependência condensa vários dramas de uma pessoa incapaz de lidar com eles de outra maneira, constatamos nesses casos, a tentativa desesperada de escapar de uma realidade que se sente ser, no mínimo, ameaçadora.
Em um texto célebre, Freud mencionou que é impossível enfrentarmos a realidade o tempo todo sem nenhum mecanismo de fuga. Concordo com essa ideia e também que existam pessoas capazes de dar destinos diferentes para as angústias que sentem. Essa é a diferença, por exemplo, entre o otimista e o pessimista.
É aqui que vejo se aproximarem aquela minha cliente que se culpou por ter saído do emprego e um dependente de maconha que faz uso da droga após um dia de trabalho normal. Ambos [e tantos outros] lidam como podem e até onde aguentam, com as suas realidades.
Sob esse ponto de vista, percebe-se que a droga deixa de ser o único e grande mal da sociedade [como algumas pessoas a acabam vendo]. Percebe-se que ela é sintoma e que carrega algo conhecido a todos nós.
Saber lidar com a realidade exige recursos internos. Com “recursos”, quero dizer a capacidade para tolerar angústias, de se reconhecer dependente das outras pessoas sem que isso possa ser um problema, saber que não podemos ter tudo na hora que queremos e que somos seres em conflito constante. Esse tipo de coisa, apesar de ser comum, torna um inferno a vida de alguém que não pôde desenvolver, dentro de si, maneiras mais elaboradas para lidar com tais exigências.
Sem recursos suficientemente bons para lidar com essas exigências, será muito difícil alguém tolerar a própria realidade sem ter que escapar dela toda hora. Acredito que aquela minha cliente fez bom uso de seus recursos até onde conseguiu. E qualquer um que trabalhe em ambientes competitivos e de muita cobrança, pode ter aí mais um obstáculo significativo para lidar.
Como alguém que está em contato com pessoas dentro e fora da minha clínica, acredito fielmente que esses recursos internos são passíveis de melhoras e de eventuais falhas. Mas uma boa capacidade para lidar com as exigências da vida evitará sofrimentos grandes. As quedas serão suportáveis e as consequências pequenas. Portanto, vive-se melhor e é aí que uma boa análise poderia se fazer útil.
Quanto mais recursos internos para saber o que fazer numa situação angustiante, menor a necessidade de fuga da realidade através do uso de substâncias nocivas à saúde [ou de outras saídas que também possam trazer prejuízos]. Tanto no caso do dependente químico como qualquer outra pessoa.
Em todos os casos, é preciso ajudar quem se interessa [ou despertar em quem não se interessa], tomar ciência daqueles recursos que estão lhe dando a sensação de desamparo frente às exigências de seu cotidiano. Não haverá a necessidade de buscar fora, algo que a complete internamente.
Recentemente, escutei numa palestra que “às vezes, é impossível dar um passo adiante sem ter que dar muitos passos atrás”. Isso me fez pensar que a mesma realidade que pode ser difícil suportar dentro e fora do ambiente de trabalho, também vive dando novas oportunidades, a cada momento, de ser mais bem aproveitada.
O foco de qualquer programa anti-drogas, então, não deve esquecer que por trás de trajes sociais existem pessoas com suas histórias, lidando, cada uma delas, com a sua própria realidade.
Esse tipo de coisa também ajuda as empresas a não esquecerem aonde é que elas realmente podem ajudar quem trabalha para, e por, elas.
André Schüller é psicanalista, membro do serviço de psicoterapia do Hospital das Clínicas em São Paulo, especialista em Teoria Psicanalítica [PUC/SP] e conveniado do SinSesp. Contato: (11)97262-3084 ou www.terapiapsicanalitica.webs.com