Afinal, qual a relação entre a Era digital e os livros e a história no Secretariado?
Rosimeri Ferraz Sabino
Em época de intensos debates sobre a aplicação e repercussões da Inteligência Artificial (IA) na sociedade contemporânea, por que se falar em livros ou no passado? Simples: porque tudo que se tem em termos materiais e comportamentais na atualidade é fruto da ação de uma sociedade precedessora. Ou seja, linguagem, comportamento e tecnologias anteriores serviram de base para o desenvolvimento das sociedades. Se hoje desfrutamos de aparatos tecnológicos para quase todas as nossas atividades pessoais e profissionais é porque, desde a década de 1940, inventores buscavam materializar dispositivos computacionais.
Mas o desenvolvimento tecnológico não ocorre desmembrado dos aspectos comportamentais e sociais que um novo contexto implica. Exemplo disso é a invenção da máquina de escrever, em 1872 , por Christopher Latham Sholes. Esse equipamento, que trouxe para as empresas uma outra forma de produção das atividades administrativas, também gerou uma nova ocupação: as datilógrafas. O próprio inventor indicou o seu invento como um meio menos penoso para as “mulheres ganharem a vida”. Assim, graças à exibição pública da máquina de escrever, feito pela filha de Sholes, Lilian, a imagem de uma mulher junto à máquina de escrever foi cristalizada na sociedade.
Em desmembramento dessa atividade, surgiram escolas de datilografia em todo o mundo, voltadas exclusivamente para mulheres que aspiravam ao ofício de secretáriadatilógrafa. Junto com os ensinamentos técnicos, as jovens secretárias recebiam lições de comportamento, etiqueta e escrita. Para o apoio pedagógico, livros foram escritos e utilizados na orientação dos saberes necessários para a nova carreira de secretária. Na medida em que as máquinas para os serviços administrativos evoluíram, o manejo delas passava a ser incorporado à preparação de secretárias.
O contingente de secretárias nas empresas consolidou a identidade de um ofício feminino na sociedade, ganhando referências na literatura de entretenimento. Os romances de folhetim traziam nos enredos, na linguagem e nas imagens a interpretação sobre o que os autores entendiam como realidade do Secretariado. O consumo desse gênero literário, intensificado no Brasil ao final da década de 1960, embora ficcional, difundia discursos que delimitavam a figura da secretária ao universo exclusivamente feminino, tendo a beleza e a sedução como elementos comuns às relações nos escritórios.
Entre os leitores dessa literatura constavam, na grande maioria, mulheres. Elas, que na origem do ofício secretarial, estiveram ligadas às tecnologias (como a máquina de escrever), passaram a receber dos romances de folhetim os sentidos da feminilidade como inerente e primordial ao Secretariado. Embora esse aspecto pareça deslocado da atualidade, ele firmou implicações para o mercado de trabalho, onde quase a totalidade das oportunidades para o Secretariado destina-se, ainda, a mulheres.
Constata-se, assim, que embora estejamos vivendo em tempos da quarta revolução industrial, com a convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas, as condições do fazer secretarial se alteraram no âmbito técnico e tecnológico, mas sob a persistente “sombra” dos estereótipos sobre a mulher no mercado de trabalho. Eis, aqui, a relevância de se compreender que a automatização pode alterar a dinâmica social, mas não serão as máquinas as responsáveis pelas necessárias reflexões sobre o mundo social. Essa tarefa cabe a nós, considerando as experiências constituintes de nossa história e o que almejamos para os que nos sucederem.